As armadilhas da voz de locutor

Ter “voz de locutor” pode te deixar acomodado naquela zona de conforto da sua voz de locutor, entendeu? Explico.

Que locutor que não sente que acabou de receber uma massagem ultra relaxante no ego ao ouvir que sua “voz de locutor” é linda? Que nasceu pra isso? Que arrepia? Ui, já consigo até imaginar o Ferreira Martins falando “Novo Hyundai ix35” na sua sala, agora. É de arrepiar mesmo!

Enfim, os adjetivos e os elogios à tal “voz de locutor” são diversos. E isso não é ruim, claro. É sempre bom. Afinal, quem é que que não gosta de receber um elogio? Ou vários?

Nesta nossa carreira de voice over (termo comumente usado em inglês para este tipo de profissional da voz), é comum recebermos feedback dos clientes (sinal de que um bom trabalho foi feito), do público, ouvinte ou telespectador (e isso é muito motivador!) e, claro, da família (ah, elogio da família conta sim, vai).

Pois saiba que esse mar de elogios é o tal reconhecimento da nossa profissão, sim, juntamente com outros fatores como ser (bem) pago para trabalhar e receber indicações de empresas/clientes para outros trabalhos.

Ouse. Varie. Experimente. Explore suas possibilidades vocais! É disso que eu falo.

ACOMODAÇÃO E MONOTONIA

Mas é aí que mora o perigo. Ter “voz de locutor” pode te deixar acomodado naquela tal zona de conforto da sua, digamos assim, voz de locutor, entendeu?

Explico: ao achar que sua voz é linda e que se deve mostrá-la ao mundo pura e simples assim como é, existe uma chance bem alta de se cair em uma invariabilidade e uniformidade de tom, mais conhecidas como monotonia. É aquele locutor “viciado”, que fala de forma dura, rígida e passa a impressão de uma voz forçada, imposta. Esse tipo de locutor parece que está sempre falando no rádio (dos anos 70) com os ouvintes. Falta-lhe versatilidade, flexibilidade, enfim, vida na voz.

Como afirma a fonoaudióloga Karine Sandalo Nalesso, mestre pela UNICAMP e especialista em voz, “nossa voz é repleta de possibilidades. Sua produção depende da anatomia, fisiologia e funcionalidade dos pulmões, laringe, trato vocal, boca, nariz, bem como dos ajustes que fazemos com esses órgãos e estruturas. Assim, a emissão vocal de uma pessoa pode atingir graves, agudos, tons médios, além de variações de ressonância que darão características diferentes nessa voz, e permitir novas descobertas vocais que são fundamentais para atender a demanda do mercado”.

Então, se nossa voz quando bem trabalhada pode ser bastante versátil e desenvolver tons e nuances diversas, chegamos à conclusão de que o locutor que se apaixona pela própria voz corre um sério risco de ficar muito limitado profissionalmente justamente por essa paixão narcísica, certo? “O locutor em início de carreira, em parte, espelha-se em vozes ou em profissionais que lhe servem como modelo de imitação para o uso vocal. A simples imitação não permite a construção da identidade vocal, fundamental para a diversificação nas narrativas e nos diversos estilos e tipos de locução. Vale destacar, que a voz do locutor foi por muito tempo, estigmatizada e padronizada pelos empregadores, sendo que as vozes que não se encontravam dentro do padrão não eram valorizadas no meio. Há alguns anos isso vem mudando e a individualidade, a flexibilidade, o dinamismo, a expressividade e a qualidade vocal estão sendo valorizados e requisitados para conseguir novos trabalhos, bem como atender necessidades do mercado. O desafio comunicativo para a versatilidade vocal é o conhecimento das potencialidades e limites da própria voz e do corpo, no qual a atuação fonoaudiológica especializada torna-se fundamental, ampliando as possibilidades de carreira do locutor”, conclui a fono.

É fácil percebermos a importância para quem começa no maravilhoso mundo da locução – e mesmo para quem já atua há um bom tempo na área – de consultar um(a) profissional da fonoaudiologia. No médio e longo prazos, um trabalho bem feito com a própria voz pode fazer muita diferença na profissão de voice over.

LEITURA X INTERPRETAÇÃO

Outro problema bem comum a muito locutor de voz bonita que conheci (e que conheço) é a falta de interpretação nos textos, ou seja, em vez de interpretar as palavras, frases e ideias que estão ali louquinhas para ganharem vida, o locutor prefere confiar na “voz de motel” tão elogiada e amada e paparicada e acariciada e… e nada. Nada contra a maré, contra o fluxo, prende a fluidez, mata a naturalidade.

Justamente por essa rigidez na voz quase que intocável, muita gente não passa em testes de locução e, consequentemente, deixa de pegar bons trabalhos. E depois não adianta reclamar que tem ator pegando trabalho de locutor. Os tempos mudaram. Hoje estúdios e produtoras pedem muito a tal da naturalidade. E o diferencial está sim na interpretação do natural.

Como bem disse o locutor espanhol Luis Alberto Casado, “não basta ter uma voz bonita, é necessário estudar as pausas, aprimorar a interpretação e compreender o sentido das frases antes de gravar o áudio”.

Portanto, não leia somente. Entenda o que o texto quer dizer. Busque a intenção que está ali (ou as intenções que podem variar a cada parágrafo). Interprete. Dê vida às palavras. Treine isso diariamente, exaustivamente. Brinque com sua voz. Teste maneiras diferentes. Se grave. E se ouça, sempre.

Pois, como já disse o poeta brasileiro Manoel de Barros (1916-2014), “a importância de uma coisa não se mede com fita métrica nem com balanças nem barômetros, etc. A importância de uma coisa há que ser medida pelo encantamento que a coisa produza em nós.”

Então, aproveite sua bela voz de locutor para desenvolvê-la ainda mais e, como consequência, encantar ainda mais as pessoas. Afinal, uma massagem ultra relaxante no ego sempre cai bem.

Confira aqui 4 dicas para se tornar um locutor ainda melhor.